
Depois de ter terminado de escrever a minha mensagem anterior, desci à sala de onde vinham as fortes pancadas no vidro.
De facto, os ramos grossos da árvore grande que está em frente à sala batiam furiosamente contra o vidro, mas lembram-se? Não havia vento nenhum na noite da Consoada.
Que coisa estranha!
A árvore agitava-se como se tivesse vontade própria.
Desliguei o alarme e dei a volta ao jardim todo para ver se via alguém, mas nada. Então, ao longe, ouvi um barulho que me pareceu vir da casa de banho junto à porta e entrei. Ao passar pelo espelho, olhei de relance e … lá do outro lado … não foi a mim que me vi. Estava ali mesmo à minha frente, do outro lado do espelho, uma figura lívida de um homem velho, com a barba por fazer de três dias e o cabelo cortado do mesmo tamanho da barba. E sabem? As sobrancelhas eram também do mesmo tamanho da barba. E a cara lívida, quase branca, numa expressão tão triste. Mas a boca era vermelha, de um vermelho de sangue.
Olhei outra vez para o espelho e agora, para minha surpresa, era eu que lá estava. Estava branco, também. Sentia-me a tremer violentamente. E com um frio de morte!
Porquê a mim?
Porque é que isto me estava a acontecer?
Que estranho! Estaria com alucinações?
Foi então que aquilo tudo começou. Primeiro como uma súplica triste e chorosa, arrastada e fria. Triste, tão triste que dava vontade de chorar, só de ouvir. De onde viria aquele ruído? De que zona profunda do nada aquilo viria? Pensei duas vezes em subir a escada, em ficar ali ou em sair de casa a correr. De repente, senti, de novo, aquele vento lúgubre a passar por mim.
Outra vez? Pensei.
O que vou fazer? De onde vem isto tudo? O que se está a passar?
E então, sem estar minimamente à espera, um grito felino feriu-me os ouvidos. Quase como se fosse um miado brutal de um gato demoníaco, estridente e aterrador. Mas triste, tão profundamente triste!
Tenho que fazer algo, recordo-me de ter pensado.
Agora ouvia distintamente a súplica arrepiante e gélida, como se fosse um chamamento longínquo de alguém infinitamente aflito e que me chamasse para perto de si. Entretanto, tremendo violentamente, quase sem poder controlar as mãos, fui andando pela casa fora e fui acendendo as luzes todas. Casa e jardim tudo iluminado. E não via nada! Não sei se foi por isso, mas, subitamente, com um estrondo enorme, as luzes apagaram-se todas ao mesmo tempo.
Agora, eu ali estava, envolto na mais completa escuridão, com os gemidos e chamamentos cada vez mais fortes, sentindo aquelas passagens de ar gélido pela minha cara com, cada vez, mais frequência, até que ouvi, de novo, o mesmo grito miado, uma, … duas, … três vezes.
Então o grito, lentamente, foi-se transformando num sonoro toque de campainha.
Sim, era a campainha do meu portão da rua a tocar.
Acordei rapidamente, levantei-me do sofá da sala e fui a correr até ao portão.
Era o guarda-nocturno a avisar-me que eu tinha deixado as luzes todas acesas e a saber se estava tudo bem. Disse-lhe que sim, apesar de ter reparado na cara de dúvida do guarda, e despedi-me desejando-lhe um bom Natal.
Ele foi-se embora para a sua ronda habitual e só quando já estava a fechar a porta de casa é que reparei que a minha mão estava toda arranhada e que estava fria como o gelo.
O que se terá passado?
Ainda hoje não consigo perceber e penso nisto continuamente desde esse dia.